Miséria, a face da irresponsabilidade
O tsunami mundial ganhou ainda mais força, esta semana, confirmando o cenário de sombrias perspectivas econômicas e sociais para todos os países em diferentes graus até 2010, independentemente de sotaques e cores ideológicas. Por ocasião da reunião do G-20 (países ricos e principais países emergentes), rolou solta a pancadaria e quebra-quebra de vitrines de bancos, em Londres. Estradas argentinas foram bloqueadas por agricultores enfurecidos contra o aumento de impostos sobre suas exportações e, nos Estados Unidos, epicentro da crise e país mais rico do mundo, está aumentando o número de americanos dormindo nas ruas e em tendas nos campings, porque perderam a propriedade de suas casas hipotecadas.
Não há luz ainda no final do túnel e não faltam exemplos diários para se ilustrar esta tragédia capitalista anunciada. Desde simples cenas cotidianas de famílias americanas, que foram obrigadas a entregar seus cães a canis por absoluta falta de condições de criá-los, até a falência de jornais centenários, o retrato da primeira crise mundial do século XXI está estampada com força nas manchetes.
Mas, após o desemprego em massa, a mais inquietante face desta espiral do capitalismo está, certamente, na África, Ásia e América do Sul, onde o problema não é salvar bancos e montadoras, mas sim crianças que morrem de fome. Segundo alertou o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, 53 milhões de pessoas a mais cairão no patamar da pobreza absoluta, este ano, ou seja, terão que (tentar) sobreviver por dia com menos de US$ 1,25 (o equivalente a R$ 2,83) por causa da redução de 1,7% do crescimento da economia mundial (o pior declínio mundial desde a Segunda Guerra) em comparação ao aumento de 1,9% registrado em 2008. As vendas de bens e serviços terão redução de 8%, o pior resultado em 80 anos (www.worldbank.org).
A partir destes dados, calcula-se que 22 crianças morrerão de fome, por hora, ou seja, 400 mil crianças a mais morrerão, no ano. Dados levantados por Nicholas Kristof, do "New York Times", indicam ainda que os 500 mais ricos do mundo ganharam mais do que os 416 milhões mais pobres, demonstrando claramente que este segundo grupo sofrerá as piores consequências, mesmo sem ter a menor responsabilidade pela crise.
A boa notícia é que está saindo do forno nova regulamentação financeira internacional desta cúpula do G-20 e aprovação de mais US$ 5 trilhões de injeção na veia até 2010 para sanear os chamados ativos tóxicos, que contaminaram os mercados. A indispensável transparência na contabilidade internacional e maior controle dos "paraísos fiscais", que ainda protegem o sigilo bancário, foram também defendidos pelo G-20 para restaurar a confiança nas economias e restabelecer novo sistema internacional: mais ético e multilateral.
Mas, Zoellick está certíssimo em chamar a atenção para a inabilidade dos principais governos em criar mecanismos para prever e remediar esta crise. "Não é o momento para complacência, ...nem para respostas regionais, nem nacionalistas. Enquanto em Washington, Londres e Paris, discute-se o pagamento ou não de bônus, na África, Ásia e América do Sul, a luta é por comida", diz. Nada mais direto.
Os "banqueiros de olhos azuis" não foram os únicos responsáveis pela falta de critérios rigorosos na concessão de créditos nos EUA: o próprio governo americano demonstrou incompetência no monitoramento de seu sistema bancário e financeiro.
Ótimo que nossos bancos estejam sólidos, mas nossos pobres precisam de casa, saúde, educação e trabalho decentes e não de cotas e bolsas permanentes.
A queixa generalizada nos protestos de rua se baseia no fato de que estes trilhões de dinheiro são conseguidos quando se trata de salvar bancos e montadoras, mas esta estratégia não vale para fazendeiros endividados, trabalhadores demitidos ou instituições sociais desestruturadas, como hospitais, escolas e universidades. Existe grave inversão de valores entre produção e capital, que se beneficia de elevadas taxas de rentabilidade em detrimento de investimentos na produção, a principal geradora de trabalho e renda. Trágica lógica.
Precisamos de economias de mercado com mais responsabilidade, menos ganância e desperdício.
Ranulfo Bocayuva é jornalista e diretor-executivo do Grupo A TARDE